Encontrei esse artigo na página do Fratresinunum.com e achei muito interessante. Faz uma breve analogia entre as partes do Concílio Vaticano II que são motivo de "tensão" entre a FSSPX e o Magistério e as outras partes do mesmo Concílio que são praticamente "ignoradas" por muitos dentro da própria Igreja. Logicamente isso não serve para justificar a postura da FSSPX frente ao Magistério do Vaticano II mais serve como uma "chamada de atenção" sobre os abusos contra a doutrina da Santa Igreja e sobre esse espírito de desobediência já condenado pelo Papa.
Apresentamos nossa tradução do artigo do teólogo John R. T. Lamont escrito para www.chiesa, a página do vaticanista Sandro Magister no portal do L’Espresso.
Licenciado em Filosofia em Oxford e em Teologia em Ottawa com o teólogo
dominicano Jean-Marie Tillard, Lamont vive na Austrália e leciona em
Sydney, no Instituto Católico e na Universidade de Notre Dame, com o
mandato canônico da arquidiocese para o ensino da teologia. Publicou
vários livros e ensaios, também em revistas não especializadas, como a
americana “First Things”. Contribuiu recentemente, também, para a
revista internacional “Divinitas”, dirigida por Monsenhor Brunero
Gherardini.
As perguntas de um teólogo
Por John R.T. Lamont
Em
um comunicado de 16 de março de 2012, a Santa Sé anunciou que o bispo
Bernard Fellay, superior geral da Fraternidade Sacerdotal São Pio X,
FSSPX, foi informado de que a resposta da Fraternidade ao preâmbulo
doutrinal apresentado pela Congregação para a Doutrina da Fé foi
considerada “insuficiente para superior os problemas doutrinais que
estão na base da fratura entre a Santa Sé e a Fraternidade”. O
comunicado não esclarece se este juízo foi emitido pela CDF e aprovado
pelo Papa, ou se é um juízo do próprio Papa. Este juízo é o último, até o
momento, de um processo de discussão sobre as questões de doutrina
entre a CDF e a FSSPX. A natureza e a seriedade deste juízo propõem
importantes interrogações para um teólogo católico. O dever deste artigo
é responder a tais perguntas.
A
discrição dos colóquios doutrinais em curso dificulta expressar um
comentário sobre o juízo. A razão desta reserva é difícil de
compreender, pois os argumentos da discussão não se referem a detalhes
práticos de uma enumeração de ordem canônica – que se beneficiaria
claramente da discrição –, mas de matérias de fé e de doutrina, que
concernem não só às partes implicadas, mas a todos os fiéis católicos.
Todavia, já se falou bastante em público sobre a posição da FSSPX para
permitir uma avaliação da situação. Há duas coisas que devem ser
consideradas aqui: a fratura entre a Santa Sé e a FSSPX produzida pelos
problemas doutrinais em discussão, e a natureza destes mesmos problemas
doutrinais.
Em uma réplica a um estudo
de Fernando Ocáriz sobre a autoridade doutrinal do Concílio Vaticano
II, o Padre Jean-Michel Gleize, da FSSPX, enumerou os elementos deste
Concílio que a FSSPX considera inaceitáveis:
“Ao
menos sobre quatro pontos, os ensinamentos do Concílio Vaticano II
estão de tal maneira em contradição lógica com as declarações do
precedente magistério tradicional, que é impossível interpretá-los na
linha dos outros ensinamentos já contidos nos documentos precedentes do
Magistério da Igreja. O Vaticano II rompeu, portanto, a unidade do
magistério, na medida em que rompeu com a unidade de seu objeto”.
“Os
quatro pontos são os seguintes. A doutrina da liberdade religiosa, tal
como se expressa no número 2 da declaração ‘Dignitatis Humanae’,
contradiz os ensinamentos de Gregório XVI na ‘Mirari vos’ e de Pio IX na
‘Quanta cura’, assim como os de Leão XIII na ‘Immortale Dei’ e os de
Pio XI na ‘Quas primas’.
“A doutrina
da Igreja, tal como expressa no número 8 da Constituição ‘Lumen gentium’
contradiz os ensinamentos de Pio XII na ‘Mystici corporis’ e na ‘Humani
generis’.
“A doutrina sobre o
ecumenismo, tal como expressa o número 8 da ‘Lumen gentium’ e o número 3
do decreto ‘Unitatis redintegratio’, contradiz os ensinamentos de Pio
IX nas proposições 16 e 17 do ‘Syllabus’, os de Leão XIII na ‘Satis
cognitum’ e os de Pio XI na ‘Mortalium animos’.
“A
doutrina da colegialidade, tal como expressa no número 22 da
constituição ‘Lumen gentium, inclusive no número 3 da ‘Nota praevia’,
contradiz os ensinamentos do Concílio Vaticano I sobre a unicidade do
sujeito do supremo poder na Igreja, e a constituição ‘Pastor aeternus’”.
Padre
Gleize tomou parte na discussão doutrinal entre a FSSPX e as
autoridades romanas, assim como o fez também Ocáriz. Podemos assumir de
forma razoável as afirmações citadas como uma descrição dos pontos
doutrinais sobre os quais a FSSPX não quer transigir e que foram
considerados pela Santa Sé como inevitável origem da fratura.
O Vaticano II como razão da fratura?
A
primeira pergunta com a qual tropeça um teólogo em relação à posição da
FSSPX diz respeito à questão da autoridade do Concílio Vaticano II. O
artigo de Ocáriz, ao qual respondeu o Padre Gleize, publicado na edição
de 2 de dezembro do L’Osservatore Romano, parece sustentar que uma
recusa à autoridade do Vaticano II seja a base da fratura verificada
pela Santa Sé. Mas para quem está a par tanto da posição teológica da
FSSPX como do ambiente de opinião teológica na Igreja Católica, esta
tese é difícil de entender. Os pontos mencionados pelo Padre Gleize são
apenas quatro do volumoso magistério do Vaticano II. A FSSPX não rechaça
o Vaticano em sua globalidade: pelo contrário, Dom Fellay afirmou que a
Fraternidade aceita 95 por cento de seus ensinamentos. Isso significa
que a Fraternidade é mais fiel aos ensinamentos do Vaticano II que boa
parte do clero e da hierarquia da Igreja Católica.
Consideremos as seguintes afirmações deste Concílio:
“Dei Verbum” 11:
“A
santa mãe Igreja, segundo a fé apostólica, considera como santos e
canônicos os livros inteiros do Antigo e do Novo Testamento com todas as
suas partes, porque, escritos por inspiração do Espírito Santo (cfr.
Jo. 20,31; 2 Tim. 3,16; 2 Ped. 1, 19-21; 3, 15-16), têm Deus por autor, e
como tais foram confiados à própria Igreja. Todavia, para escrever os
livros sagrados, Deus escolheu e serviu-se de homens na posse das suas
faculdades e capacidades, para que, agindo Ele neles e por eles,
pusessem por escrito, como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo
que Ele queria.
“Dei Verbum” 19:
“Os
quatro Evangelhos, cuja historicidade afirma sem hesitação, transmitem
fielmente as coisas que Jesus, Filho de Deus. durante a sua vida
terrena, realmente operou e ensinou para salvação eterna dos homens, até
ao dia em que subiu ao céu”
“Lumen gentium” 3:
“Sempre que
no altar se celebra o sacrifício da cruz, na qual «Cristo, nossa Páscoa,
foi imolado» (1 Cor. 5,7), realiza-se também a obra da nossa redenção”
“Lumen gentium” 8:
“A
sociedade organizada hierarquicamente, e o Corpo místico de Cristo, o
agrupamento visível e a comunidade espiritual, a Igreja terrestre e a
Igreja ornada com os dons celestes não se devem considerar como duas
entidades, mas como uma única realidade complexa, formada pelo duplo
elemento humano e divino
“Lumen gentium” 10:
“O
sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico,
embora se diferenciem essencialmente e não apenas em grau, ordenam-se
mutuamente um ao outro; pois um e outro participam, a seu modo, do único
sacerdócio de Cristo. Com efeito, o sacerdote ministerial, pelo seu
poder sagrado, forma e conduz o povo sacerdotal, realiza o sacrifício
eucarístico fazendo as vezes de Cristo e oferece-o a Deus em nome de
todo o povo; os fiéis, por sua parte, concorrem para a oblação da
Eucaristia em virtude do seu sacerdócio real, que eles exercem na
recepção dos sacramentos, na oração e acção de graças, no testemunho da
santidade de vida, na abnegação e na caridade operosa”
“Lumen gentium” 14:
“
Fundado na Escritura e Tradição, [o concílio] ensina que esta Igreja,
peregrina sobre a terra, é necessária para a salvação. Com efeito, só
Cristo é mediador e caminho de salvação e Ele torna-Se-nos presente no
Seu corpo, que é a Igreja; ao inculcar expressamente a necessidade da fé
e do Baptismo (cfr. Mc. 16,16; Jo. 3,15), confirmou simultaneamente a
necessidade da Igreja, para a qual os homens entram pela porta do
Biptismo”.
“Gaudium et spes” 48:
“Por
sua própria índole, a instituição matrimonial e o amor conjugal estão
ordenados para a procriação e educação da prole, que constituem como que
a sua coroa.”
“Gaudium et spes” 51:
A
vida “deve, pois, ser salvaguardada, com extrema solicitude, desde o
primeiro momento da concepção; o aborto e o infanticídio são crimes
abomináveis”.
A grande maioria dos
teólogos nas instituições católicas da Europa, América do Norte, Ásia e
Austrália tendem a rechaçar todos ou a maior parte destes ensinamentos.
Estes teólogos são seguidos nessas áreas pela maior parte das ordens
religiosas e por uma parte considerável dos bispos. Seria difícil, por
exemplo, encontrar um jesuíta que ensine teologia em qualquer
instituição jesuíta e que aceite um só destes textos. Os textos citados
são apenas uma seleção dos ensinamentos do Vaticano II que são
rechaçados por estes grupos; e poderiam ser aumentados muito em número.
Pois
bem, tais ensinamentos fazem parte justamente desses 95% do Vaticano II
que a FSSPX aceita. E, diferentemente dos 5% rechaçados deste Concílio
pela FSSPX, os ensinamentos referidos mais acima são centrais para a fé e
a moral católica e incluem alguns dos ensinamentos fundamentais do
próprio Cristo.
A primeira
interrogação que o comunicado da Santa Sé apresenta a um teólogo é: por
que a recusa pela FSSPX de uma pequena parte dos ensinamentos do
Vaticano II origina uma fratura entre a Fraternidade e a Santa Sé,
enquanto a recusa mais numerosa e importante dos ensinamentos do
Vaticano II por parte de outros grupos os deixa tranquilos em seu lugar e
em posse de uma plena condição canônica? A recusa da autoridade do
Vaticano II pela FSSPX não pode ser a resposta a esta questão. Na
realidade, a FSSPX mostra maior respeito pela autoridade do Vaticano II
que a maior parte das ordens religiosas na Igreja.
É
interessante observar que os textos do Vaticano II rechaçados pela
FSSPX são aceitos por esses grupos dentro da Igreja que recusam outros
ensinamentos deste Concílio. Alguém poderia supor, portanto, que são
justamente estes textos específicos – sobre a liberdade religiosa, a
Igreja, o ecumenismo, a colegialidade – que causam o problema. A fratura
entre a Santa Sé e a FSSPX nasce porque ela rechaça estes elementos
particulares. Mas se é este o caso, a primeira pergunta se reapresenta,
simplesmente, com maior força.
Problemas com a doutrina católica?
Se
a fratura entre a Santa Sé e a FSSPX não nascesse da recusa da
autoridade do Concílio Vaticano II pela Fraternidade, poderia ser o caso
de a fratura nascer da posição doutrinal da mesma FSSPX. Depois de
tudo, há dois aspectos da posição da FSSPX sobre o Vaticano II. O
primeiro é a tese segundo a qual algumas afirmações do Vaticano II são
falsas e não devem ser aceitas; este é o aspecto que rechaça a
autoridade do Concílio. O outro aspecto é a descrição positiva da
doutrina que deveria ser aceita no lugar das alegadas falsas afirmações.
Este segundo aspecto é o mais importante da discussão entre a FSSPX e
as autoridades romanas. Afinal de contas, a finalidade da existência dos
ensinamentos magisteriais é comunicar a verdadeira doutrina aos
católicos, e sua autoridade sobre os católicos deriva desta finalidade.
Este aspecto da posição da FSSPX consiste em afirmações sobre as
doutrinas que os católicos deveriam crer, afirmações que em si mesmas
não dizem nada sobre os conteúdos ou a autoridade do Vaticano II.
Devemos, portanto, considerar se estas afirmações podem originar uma
fratura entre a Santa Sé e a FSSPX.
Ao
julgar a posição doutrinal da FSSPX, devemos ter em conta que há uma
diferença essencial entre a posição da FSSPX sobre o Vaticano II e a
posição desses setores dentro da Igreja que rejeitam os ensinamentos
acima citados, tanto de “Dei Verbum” como de “Lumen gentium” e “Gaudium
et spes”. Estes setores simplesmente afirmam que certas doutrinas da
Igreja Católica não são verdadeiras: eles rechaçam o ensinamento
católico e ponto. Pelo contrário, a FSSPX não defende que ensinamento da
Igreja Católica seja falso: defende que algumas afirmações do Vaticano
II contradizem os ensinamentos magisteriais que têm maior autoridade e,
portanto, aceitar as doutrinas da Igreja Católica exige aceitar estes
ensinamentos mais autorizados, rejeitando a pequena porção de erros
presentes no Vaticano II. Ela sustenta que o ensinamento verdadeiro da
Igreja Católica deve ser encontrado nas afirmações precedentes e mais
autorizadas.
Positivamente, portanto, a
posição doutrinal da FSSPX consiste em defender os ensinamentos de uma
parte dos pronunciamentos magisteriais. O Padre Gleize enumera os mais
importantes pronunciamentos em questão: a encíclica de Gregorio XVI
“Mirari vos”, a encíclica de Pio IX “Quanta cura” com o respectivo
“Syllabus”, as encíclicas de León XIII “Immortale Dei” e “Satis
cognitum”, as encíclicas de Pio XI “Quas primas” e “Mortalium animos”,
as encíclicas de Pio XII “Mystici corporis” e “Humani generis”, e a
constituição do Concílio Vaticano I “Pastor aeternus”. Todos estes são
pronunciamentos magisteriais de grande autoridade e, em algum caso,
incluem definições dogmáticas infalíveis, o que não ocorre com o
Concílio Vaticano II.
Isso apresenta a
segunda questão a respeito da posição da Santa Sé sobre a FSSPX, que
induz um teólogo a se perguntar: como pode haver objeções à FSSPX quando
ela defende a verdade de pronunciamentos magisteriais de grande
autoridade?
É uma interrogação que tem
em si mesma a resposta: não pode haver tais objeções. Se a posição da
FSSPX sobre a doutrina pode ser julgada objetável, deve ser sustentado
que sua posição não coincide com a que realmente ensinam os
pronunciamentos magisteriais e, portanto, a FSSPX falsificaria o
significado de tais pronunciamentos. Esta tese não é fácil de ser
defendida, pois quando esses pronunciamentos precedentes foram
promulgados, deram origem a um considerável corpo de estudos teológicos
cujo fim era a sua interpretação. O significado que a FSSPX lhes atribui
deriva deste conjunto de estudos e corresponde a como esses
pronunciamentos foram entendidos no tempo em que se produziram.
Isso
faz com que a terceira questão que surge em um teólogo seja ainda mais
precisa e urgente: o que ensinam, na realidade, estes pronunciamentos,
se não é o que a FSSPX diz que ensinam?
A
resposta que muitos dão é que os significados efetivos destes
pronunciamentos são dados por, ou ao menos estão em harmonia com, os
textos do Concílio Vaticano II que a FSSPX rejeita. Podemos admitir esta
resposta como verdadeira, mas isso não ajudará a responder a pergunta.
Os textos do Vaticano II não oferecem muitas explicações sobre o
significado destes pronunciamentos precedentes. Por exemplo, a
“Dignitatis humanae” diz simplesmente que seu ensinamento “deixa íntegra
a doutrina tradicional católica sobre o dever moral dos homens e das
sociedades para com a religião verdadeira e a única Igreja de Cristo”.
Com isso, não oferece nenhuma explicação desta doutrina.
A
insuficiência desta resposta conduz à quarta questão, que é a segiunte:
qual é o ensinamento autorizado da Igreja Católica sobre os pontos
disputados entre a FSSPX e a Santa Sé?
Não
há nenhuma dúvida de que as discussões doutrinais entre ambas as partes
implicam um exame da questão, mas a reserva de tais discussões deixa o
resto da Igreja às escuras sobre esta matéria. Sem uma resposta à quarta
questão, não há possibilidade de resposta a esta quinta pergunta: por
que as posições doutrinais da FSSPX dão origem a uma fratura entre a
Fraternidade e a Santa Sé?
Mas esta
quinta pergunta, embora significativa, não tem a importância da quarta. A
natureza do ensinamento da Igreja Católica sobre a liberdade religiosa,
o ecumenismo, a Igreja e a colegialidade é de grande importância para
todos os católicos. As perguntas suscitadas pelas discussões entre a
Santa Sé e a FSSPX dizem respeito a toda a Igreja, não só às partes
empenhadas na discussão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário